quinta-feira, 24 de março de 2011

POR JOSÉ LEITE NETTO

Recebi por esses dias através do poeta José Mário Dias o livro de contos “Devotos, Loucos e Peregrinos” do escritor Saraiva Júnior e passei a refletir o que seria a fé e o que posso dizer sobre a palavra ateu. Nietzsche com toda sua eloqüência filosófica e dedicação ao estudo da psique dos deuses e dos homens, foi, não por menos e não se assustem, um homem de fé. No entanto prefiro me distanciar da nuança que separa estas duas palavras e cair direto nas páginas do livro ou afirmar, assim como Nietzsche, que “Deus morreu e muitas são as cavernas e muitos são os homens que vivem e viverão sob sua sombra”. Mas qual sombra e em qual caverna se esconde o gênio criativo daqueles que dedicam horas ao ofício de escrever? Creio que no reino da fé.

Saraiva Júnior escreve seguindo os passos dos peregrino de Assis, obstinado pela palavra, dedicado às orações de seus personagens. Personas que ora se apresentam crueis refletindo no espelho as mazelas humanas. É o caso do conto intitulado “Hering ou Francisco” que nos relata um dos dramas mais terríveis da atualidade: a violência doméstica. Saraiva pincela a realidade com delicadeza e narra a tragetória triste de um casal apaixonado e do fruto de sua paixão.

Acredito que a literatura deve ter uma função social, deve narrar a realidade. E não foi o Eça quem disse que “o realismo é a anatomia do caráter?”

Em outro sentido a arte de escrever oscila nos polos entre o bem e o mal, entre o amar e o odiar, a construção e a destruição.

“- Professora, esse eu conheço: foi quem me segurou no colo quando o papai atirou em mamãe e depois atirou em sua própria cabeça.”(Saraiva Júnior)

Mas por que o amor, pergunta Sartre, deseja “capiturar” a consciência do outro? Então por que o amor, palavra mais lugar comum nos léxicos, mata quando se ama? Deixo esta pergunta para os filósofos ou para os santos, eu, no entanto, caminho para página 37 seguindo “O Caminho do Poeta”, andarilho e franciscano de cada dia, buscando em sua existência uma resposta para a existencia de Deus. É assim que leio Olavo, poeta e músico, mais um personagem dos muitos da mente criativa de Saraiva Júnior em seu livro “Devotos, Loucos e Peregrinos”.

José Leite Netto é poeta e mantém o blog http://cachacariadeletras.blogspot.com/

PEREGRINOS DE DEUS

O sistema da literatura, segundo o sentimento de Antônio Cândido, compreende uma pluralidade de sentidos que se alojam para muito além do texto literário. Aponta para o que subjaz nas entrelinhas do palimpsesto, fora dos campos específicos da semântica, da linguagem ou da sintaxe polifônica que se infiltra nos signos culturais que interagem com o contexto literário.

Antônio Cândido não quis sugerir com isso a existência de uma sociologia da literatura, como categoria do conhecimento sociológico. Quis, pelo contrário, evidenciar a existência da sociologia literária como um instrumento de conhecimento crítico dos arquétipos que a literatura representa, enquanto documento e espelho dos diversos modelos de escrita.

O sistema literário, com efeito, é mais do que plural em suas intenções. Tudo o que faz da literatura uma produção cultural para além do isolamento do sujeito ou tudo o que a conduz para a dinâmica dos processos que a movimentam, integra também o conceito de sistema literário.

Saraiva Junior, autor de Devotos, Loucos e Peregrinos (Fortaleza, Impece, 2005), não está integrado no sistema social da literatura cearense, pois sequer circula nos espaços da moda onde ela é veiculada ou consumida. É, antes de tudo, um quase-desconhecido dos seus pares. Vive a solidão dos discretos que se escondem nos folguedos do sonho e do imaginário.

Uma coisa, no entanto, me parece certa com relação à sua obra: tem ela um indiscutível sabor e um inebriante cheiro do povo cearense, principalmente da gente e do povo do Ceará que sofrem com a aspereza e a aridez que rondam as cidades do interior.

Gente simples, imbuída de paixões vigorosas, de coragem e alucinações desmedidas, de devaneios e autenticidade que nos contagiam. Gente desvalida, armada pelo escudo da graça e da perseverança, vítima da violência e da resignação e expatriada da nação e da sociedade pelas quais morre e para as quais ressuscita feito sementes de mostarda.

Falo de gente porque a arte literária de Saraiva Junior é feita essencialmente de personas e não de cenários, de sacrifícios heróicos e não de paisagens-ambiente. O homem, o delírio de homens e mulheres que trabalham e sofrem a loucura dos que buscam Deus e a família como redenção e catarse da paródia humana que tecem a cada ato da sua rotina messiânica.

O autor desde livro estreou em 2000. Temporal e Outros Contos foi o título do seu primeiro conjunto de escritos. Posteriormente, em 2004, nos daria Senador Pompeu em Crônicas e, assim procedendo, consolidaria definitivamente o seu nome como um dos mais inquietos escritores do Ceará na atualidade.

O que caracteriza esses livros de Saraiva Júnior é a paixão pela autenticidade e a verossimilhança dos relatos que nos traz em forma de arte literária. Existe neles uma compulsão pelo testemunho, pelo resgate da memória atávica, pela saga e pelo heroísmo de suas personagens.

Fazendo ou não a historia ou a memória do Sertão Central do Ceará, Saraiva Júnior preocupa-se antes de tudo com a tessitura da arte literária, exibindo, às vezes, um domínio de linguagem ou de sentidos do texto literário que o deixa muito próximo, é certo, dos grandes mestres da literatura.

Nada lhe falta, acredito, para que se torne um dos nossos melhores escritores no futuro. Sabe empregar com segurança os diversos recursos da forma, tem a compulsão da escrita e conhecimento, como poucos, dos percalços da condição humana. E, bem assim, tem senso de observação dos usos, costumes, misérias e virtudes devocionais e seráficas do povo cearense.

Este novo livro de Saraiva Júnior, que tenho a honra de apresentar, é bem um atestado de quem, não sendo um franciscano de carreira, se fez um escritor franciscano para gravar, em escritura de mármore, um dos melhores relatos em torno de devotos, ascetas, peregrinos e servos de São Francisco de Assis.

Nestes contos de Saraiva Júnior, a atmosfera mística, os mistérios da graça e os testemunhos da fé se fazem os grandes eixos de abertura e de fechamento do texto. Em todos os relatos, porém, os componentes ficcionais e os recursos textuais da verossimilhança são os responsáveis maiores pela boa regularidade da técnica e pelo excelente domínio dos cortes gramaticais e estilísticos que se vão minutando a cada passo do andamento da narrativa.

Contos à clef, por certo, para aqui me valer da precedência dos romances à clef que tanto marcaram e remarcam a nossa tradição literária. Mas contos reais, que se mostram carregados de estatuto literário de monta, que honram a curta e a longa ficção do Ceará. E que honram também o nome do autor, a sua tradição cultural, a sua consciência política e, acima de tudo, a sua dignidade de cidadão e escritor.

Por Dimas Macedo, no prefácio do livro Devotos, Loucos e Peregrinos.

Fortaleza, 27/09/2005.

domingo, 9 de agosto de 2009

HERING OU FRANCISCO

Formavam um belo casal. Ele era corretor imobiliário, nascido no Rio Grande do Sul, e ela, cearense, professora do curso de Letras. Os primeiros anos do casamento foram repletos de felicidade. Em termos financeiros, levavam uma vida folgada para os padrões de classe média. Sempre que tinha oportunidade, ele gostava de chocar as pessoas dizendo-se ateu.

Com o nascimento do primeiro filho, que foi o único, a sogra sugeriu-lhes dar o nome de Francisco à criança, em razão de o menino ter vindo ao mundo em quatro de outubro, dia do aniversário do Taumaturgo. Esse foi mais um dos motivos que levou a discórdia entre genro e sogra, o que perdurou pelo resto de suas vidas. Na verdade, o menino recebeu o nome de Hering Strauss de Albuquerque, como convinha aos descendentes de alemães, de onde deitavam as raízes familiares do pai.

É fato que, por essa época, o país entrou em uma crise econômica, motivada pela alta taxa de inflação, e o setor imobiliário foi um dos mais afetados pela ausência de transações comerciais. Com a refração do mercado imobiliário e a fuga de clientes, a crise ingressou no lar dos Strauss.

Vale mencionar que, desde o início da paquera, o corretor tinha ciúmes de sua, então, bonita namorada. A questão financeira só veio agravar o relacionamento do casal, fazendo com que o pai de Hering ingerisse, cada vz mais, bebida alcoólica.

Uma noite, após ela ter demorado um pouco para retornar da faculdade para a casa, eles discutiram acirradamente e foram às agressões físicas. Ao revidar uma bofetada, ela jogou a mão no rosto do marido, ferindo-o com as unhas. Descontrolado emocionalmente, ele sacou o revólver e atirou na esposa, que caiu desfalecida. Ao constatar que havia assassinado a própria mulher, não teve dúvidas: apontou a arma para a própria cabeça e disparou, morrendo instantaneamente, diante do filho de quatro anos.

A cidade ficou abalada com a notícia da tragédia. A guarda da criança foi entregue aos avós maternos por determinação judicial. O menino foi matriculado no colégio Santa Clara e ficou assistido pela psicóloga do estabelecimento de ensino, conforme sentença prolatada pelo juiz da comarca.

Em seu primeiro dia de aula, a professora do jardim de infância disse que iria apresentar, a todos na sala, retratos de pessoas que ela qualificava de muita importância para o conhecimento dos alunos. Caso eles reconhecessem as figuras, levantassem as mãos e dissessem os nomes. A professorinha, então, passou a levantar algumas imagens de políticos, artistas, escritores e santos. Ao erguer uma imagem de São Francisco, apenas Hering o reconheceu, fazendo ecoar em bom som por toda a sala:

- Este eu conheço. Foi ele quem me segurou no colo quando o papai atirou em minha mãe e, depois, em sua própria cabeça.